domingo, 1 de outubro de 2017

Crónicas do Alto da Vila | por Luís Filipe Marcão | 01.10.2017

O HÁLITO DO RIO

O hálito do rio é mais suave, o cheiro menos intenso, menos húmido, a sua voz menos marulhada e grossa que a do mar. As ondas quase não se notam e chegam sem pressa, a desfazer-se aos nossos pés como que a pedir aconchego.
 O sol prepara-se para se esconder, lá atrás da ossatura da serra de Portel e deixa no silêncio líquido do Alqueva, uma poalha incandescente, brilhante, a formar um caminho de luz. Consulta-se o relógio. A tarde avança, faz estender as sombras dos toldos de colmo, em fatias enormes que ocupam desprevenidas e sem autorização as toalhas estendidas da vizinhança. O nadador-salvador saiu, há pouco mais de dez minutos, deitando um último olhar à beira da água, onde algumas crianças chapinham numa algazarra e fogem de baleias e jacarés, figuras que inventaram, num prodigioso jogo de alucinações.
 Ao largo, um rebanho pasta pachorrento. O som dos chocalhos forma uma melopeia cadenciada que se propaga no ar e chega até nós, como o acompanhamento natural de um cante de muitos séculos. Corre uma aragem aromatizada de giestas, do restolho perfumado do fim do verão.
 No restaurante, o empregado acendeu umas velas que colocou sobre as mesas num convite  a sugerir jantares românticos. Um barco inchado de gente chega à marina. Os passos ecoam ligeiros pelo passadiço de madeira. Lá em cima o castelo ilumina-se com uma luz amarela e num desmaio propositado o sol esconde-se para lá do cerro.
 A um canto da esplanada, alguém ficou como eu, de olhar parado a fixar a ilha em frente, remoendo pensamentos, desfiando saudades, o livro abandonado e aberto sobre a mesa.
 Vim despedir-me da praia. Do azul, deste areal acastanhado e desta mancha verde colocada logo atrás. Das bolas de Berlim e dos gelados de cone. Dos pinchos e tapas que nuestros hermanos trazem para a merenda, do sotaque de francês arranhado com que alguns emigrantes nos brindam.
 Algumas décadas atrás, tudo isto era privado, como se o rio pertencesse a alguém. Como se aquele senhor, dono de tantas terras, fosse também senhor das águas. Nem pescar se podia!
Agora não calculam como aprecio esta liberdade de risos e traquinices à solta, das gargalhadas fáceis dos miúdos e dos seus mergulhos de chapão, no ventre aprisionado do rio.

 Se fosse possível, compraria uma onda gigante da Nazaré e bem dividida em muitas parcelas, viria despejá-la, na próxima época, aqui na praia fluvial de Monsaraz. 


CRÓNICAS DO ALTO DA VILA
01.10.2017 
(fotos: António Caeiro)

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